terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Até agora, o melhor artigo que já li sobre o assunto

The Windmills of Their Minds

Por Paulo Pinto no Jugular

As notícias chegam a intervalos regulares, no noticiário da manhã, à hora do almoço, ao jantar. Já ninguém lhes liga importância, sobretudo no dia de glória de Cristiano Ronaldo. Hoje, no debate da SIC-Notícias, no espaço inicial de 1 minuto de escolha livre, Luís Filipe Meneses agarrou-se à notícia do dia. Pudera. Quem quer falar de uma guerra distante em dia de consagração do ego nacional? A guerra em Gaza passou a fait-divers bocejante, mesmo que a fasquia das baixas civis se aproxime do milhar, ainda que o conflito pareça sem solução, apesar de terem surgido provas de que Israel está a utilizar fósforo branco nas ofensivas. Uma arma cruel, como as bombas de fragmentação, como as minas pessoais.

Israel ataca brutalmente Gaza para terminar com as investidas do Hamas ao seu próprio território. O Hamas, depois da vaga de atentados suicidas, lança foguetes de forma indiscriminada para zonas residenciais, para causar o maior número possível de danos. Baixas. Mortos. Quantos mais, melhor. Israel protege o seu território de um inimigo cego e selvagem. O Hamas ataca o que considera ser um intruso, um monstro que há meio século oprime todo um povo. O terrorismo é a arma derradeira do desespero, quando se esgotaram as restantes. A repressão e o bombardeamento é o instrumento da defesa, da preservação e da sobrevivência de um país cercado.

Quando, há anos, passei pela primeira vez férias em Vila do Bispo, verifiquei que o local não podia ter sido melhor escolhido para a instalação de um parque eólico. As hélices moviam-se constantemente, dia e noite. Dois dias depois de ter chegado, imobilizaram-se. O vento deixou de soprar. A minha filha comentou imediatamente que havia calmaria porque os moinhos tinham deixado de fazer vento. E perguntou porque é que não se desligavam simplesmente, pois assim o vento parava e ela já podia ir à praia.

Esta confusão entre causa e efeito é risível numa criança de 5 anos. Noutros contextos, como a situação na Palestina, o humor é bem mais esverdeado e amargo. Há quem pense que as pás da barbárie israelita fazem soprar a violência e o ódio palestinianos. Há quem julgue que os ataques indiscriminados do Hamas são moinhos que insuflam ar na ferocidade e no ressentimento israelitas. Em boa verdade, os ventos que sopram na região são uma espécie de alíseos, pois sopram permanentemente. A diferença é que são instáveis e de direcção e sentido imprevisíveis. Massas de ar de humidade e temperaturas diferentes. Frentes frias e quentes, que varrem a região a um ritmo irregular mas constante. O pior é que, ao contrário do que ocorre em Vila do Bispo, aqui as pás não dependem totalmente do vento, antes agravam-no. Movem-se por causa dele, mas o seu movimento causa novas perturbações que, por sua vez, activam outros moinhos. Como se de um parque eólico formado por ventoinhas se tratasse. Um moto continuum perfeito.

Como um vórtice de um tornado, o olho remonta à criação do estado de Israel, à forma anómala como foi criado, num processo incompleto que deixou por cumprir o nascimento de um estado árabe vizinho. E em 1967, o ciclo monstruoso de ocupação completou-se. Os palestinianos passaram a ser estrangeiros na sua própria terra, uma pátria ocupada por um invasor impiedoso. Um povo prisioneiro. As guerras de sobrevivência são totais. E Israel, acossada, perseguida e cercada por inimigos, não brinca nem perdoa.

A população palestiniana é sujeita a humilhações quotidianas, a um cerco permanente, a um sufoco sem alívio. Os colonatos judaicos, apesar de tudo o que foi dito e apregoado, nunca foram desmantelados. O processo de paz foi congelado, aproveitando os 8 anos da era Bush. O desequilíbrio demográfico desfavorável foi atenuado com o apelo à imigração. Mas o problema palestiniano subsiste e é uma ameaça permanente. Se fosse possível isolar Gaza e a Cisjordânia por um muro de betão forrado a chumbo, e vendar os olhos do mundo, já teriam sido usadas armas nucleares. Ninguém me convence do contrário, ninguém me persuade da sinceridade das declarações humanitárias acerca da preocupação com baixas civis. Se Israel pudesse, os palestinianos teriam sido erradicados. O vento sopraria até não haver necessidade de a hélice se mexer.

Infelizmente, o parque eólico da região é formado por muitos moinhos. Quando as Nações Unidas permitiram a criação de um estado judaico, os países árabes mobilizaram-se para escorraçar os judeus até ao mar. Não era uma metáfora. Era literal. Não fosse a indomável vontade e unidade dos judeus enquanto povo e as armas checoslovacas (sim, porque não foram os americanos quem vendeu armas aos israelitas em 1948) e o mundo tinha assistido a um prolongamento do Holocausto. E isso, Israel não esqueceu nunca. Como nunca olvidou a hostilidade dos países vizinhos. Não deve ser fácil viver rodeado de inimigos. Regimes despóticos, na sua esmagadora maioria. E nas décadas seguintes, com o reconhecimento internacional da causa palestiniana e, sobretudo, após os acordos de Oslo, o caminho da paz falhou por pouco.

Morrer na praia, é a imagem que me ocorre. Yasser Arafat recusou a mais generosa oferta de paz, durante o governo de Barak, que Israel estava disposta a conceder. Recusou para não ser apelidado de traidor no mundo árabe. Porque o prestígio e a imagem eram-lhe mais valiosos do que as vidas dos seus concidadãos e o destino das gerações futuras. Enquanto isso, a OLP, depois Autoridade Palestiniana, afundava-se na corrupção e no descrédito internacional, dando margem de manobra para o surgimento de novos movimentos de resistência, menos permeáveis às brisas da paz.

Em mais de meio século, as calmarias foram poucas. Mas Israel é um facto irrevogável. E a causa palestiniana pelo direito a uma pátria também. Por isso, o que mais impressiona nos desenvolvimentos a que todos assistimos diariamente, com maior ou menor interesse ou enfado, é a incapacidade generalizada de ver ao longe, de ambas as partes. Dois povos condenados a serem vizinhos que todos os dias colocam mais um obstáculo, cavam mais uma vala, lançam mais uma armadilha no caminho comum que têm inevitavelmente que percorrer e que, um dia, terão que ser removidos, colmatados, retirados. E que já vai na terceira geração.

E há gente, muita, dotada de humor negro e de ironia amarga que continua a chamar "Terra Santa" àquele rectângulo, um espaço alegadamente sagrado para três religiões. Uma terra maldita, digo eu, amaldiçoada pelos defeitos dos homens que, até ver, sobrepõem-se com larga vantagem a quaisquer bênçãos divinas que alguma vez por lá tenham sido bafejadas. Uma piada de Deus, certamente, que permite que três religiões de raiz comum se digladiem e que dois povos tão próximos se chacinem mutuamente desta forma.

Pode parecer lamechas, ingénuo, simplório, escrever sobre estes assuntos em vez de dar prioridade a análises geopolíticas e estratégicas. É evidente que o timing da presente crise não é inocente. Os últimos dias de Bush. A crise política no Kadima. As pretensões do Irão a um papel hegemónico no Médio Oriente. Mas é ainda mais claro que o problema de fundo não irá desaparecer após o fim da ofensiva israelita em Gaza. Ou julgarão os generais que o Hamas desaparecerá? E que, se desaparecer, não surgirá outro movimento a tomar-lhe o lugar? E pensarão os senhores que cozinham mistelas explosivas caseiras para lançar nas cidades israelitas que farão vergar o colosso israelita? Que Israel capitulará ao terror? Quem é que é ingénuo, afinal?

E, no final de contas, pesadas as vantagens, os erros e as falácias de ambos os lados, considerados os cenários geoestratégicos, traçados os planos de acção e de paz nos complexos cenários políticos regionais, contadas as espingardas, as bombas e os rockets, a questão não deixa de se resumir a uma expressão bem mais elementar: as pás que giram por acção dos ventos e as tempestades que são geradas pelo movimento das hélices. Dos moinhos que existem no íntimo de cada um.

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